sexta-feira, 1 de maio de 2009

As Tentações, ou Eros, Pluto e a Glória

Dizem que a primeira história que esboçou algo semelhante a um pacto demoníaco foi a tentação de Cristo no deserto, quando o demônio mostra todos os reinos da terra e diz "tudo isso te darei, se me servires". Se, por um lado, a história de Fausto mostra alguém que teria aceitado essa proposta, não faltam narrativas onde os protagonistas tomam a mesma atitude que Cristo: rejeitam a tentação.

No seu livro O Spleen de Paris (mas conhecido como Pequenos Poemas em Prosa), Baudelaire dedica um dos poemas, "As Tentações, ou Eros, Pluto e a Glória", a essa temática, mas de um jeito bastante renovado por sua poética. Resolvi traduzir o poema, que vocês podem conferir abaixo.


Gravura de Almery Lobel-Riche, feita em 1921 para uma edição de Spleen de Paris.

Dois soberbos Satãs e uma Diaba não menos extraordinária subiram noite passada a escada misteriosa por onde o Inferno toma de assalto a fraqueza do homem que dorme e se comunica em segredo com ele. E eles vieram se postar gloriosamente diante de mim, de pé, como sobre um estrado. Um esplendor sulfuroso emanava dessas três personagens, que se destacavam assim do fundo opaco da noite. Eles tinham um ar tão orgulhoso e tão cheio de dominação, que eu tomei primeiramente todos os três por verdadeiros Deuses.  

A aparência do primeiro Satã era de um sexo ambíguo e ele tinha também, ao longo das linhas do seu corpo, a moleza dos antigos Bacos. Seus belos olhos langorosos, de uma cor tenebrosa e indecisa, lembravam as violetas ainda carregadas dos pesados choros da tempestade, e seus lábios entreabertos caçarolas quentes, de onde exalava o bom odor de uma perfumaria; e a cada vez que ele suspirava, insetos almiscarados se iluminavam, esvoaçando, pelos ardores de seu sopro.

Em volta de sua túnica de púrpura estava enrolada, à maneira de um cinto, uma serpente luminescente que, com a cabeça erguida, voltava langorosamente em direção a ele seus olhos de brasa. Nesse cinto vivo estavam suspendidos, alternando com frascos cheios de licores sinistros, brilhantes facas e instrumentos de cirurgia. Na sua mão direita ele tinha um frasco cujo conteúdo era de um vermelho luminoso e que tinha por etiqueta estas palavras bizarras: “Bebei, esse é meu sangue, um perfeito cordial”; na direita, um violino que lhe servia, sem dúvida, para cantar seus prazeres e suas dores e para espalhar o contágio de sua loucura nas noites de sabá.

Nos seus tornozelos delicados arrastava alguns anéis de uma corrente de ouro rompida, e quando o desconforto em que isso resultava o forçava a baixar os olhos contra a terra, ele contemplava vaidosamente as unhas de seus pés, brilhantes e polidas como pedras bem trabalhadas.

Ele me olhou com seus olhos inconsolavelmente magoados, de onde fluía uma insidiosa ebriedade, e ele me disse com uma voz cantante: “Se você quiser, se você quiser, eu farei de você o senhor das almas, e você será o mestre da matéria viva, mais ainda que o escultor o pode ser da argila; e você conhecerá o prazer, renascido sem cessar, de sair de você mesmo para esquecer-se em outro e de atrair as outras almas até confundi-las com a sua.”

E eu lhe respondi: “Muito obrigado! Não tenho o que fazer com essa tralha de seres que, sem dúvida, não valem mais que meu pobre eu. Mesmo que eu tenha alguma desgraça ao me lembrar, eu não quero esquecer nada, e mesmo se eu não te conhecesse, velho monstro, sua misteriosa cutelaria, seus frascos equívocos, as correntes pelas quais seus pés estão enredados são símbolos que explicam muito claramente os inconvenientes da sua amizade. Guarde seus presentes.”

O segundo Satã não tinha nem aquele ar ao mesmo tempo trágico e sorridente, nem aquelas belas maneiras insinuantes, nem aquela beleza delicada e perfumada. Era um homem enorme, de um rosto gordo sem olhos, de quem a pesada barriga pendia sobre as coxas e de quem toda a pele estava dourada e ilustrada, como por uma tatuagem, por uma multidão de pequenas figuras que se moviam representando as formas numerosas da miséria universal. Havia pequenos homens descarnados que se suspendiam voluntariamente em um prego; havia pequenos gnomos disformes, magros, dos quais os olhos suplicantes pediam caridade mais ainda que as mãos tremulantes; e, depois, velhas mães portando abortos que pendiam de suas mamas extenuadas. Havia ainda muitos outros.

O gordo Satã batia com seu punho sobre seu imenso ventre, de onde então saia um longo e ressonante tinido de metal, que terminava em um vago gemido feito de numerosas vozes humanas. E ele ria, mostrando impudentemente seus dentes podres, de um enorme riso imbecil, como certos homens de todos os países quando jantaram bem demais. 

E este me disse: “Eu posso te dar o que obtêm tudo, o que vale tudo, aquilo que substitui tudo!” E ele bateu no seu ventre monstruoso do qual o eco sonoro fez o comentário de sua fala grossa.

Eu me virei com nojo e respondi “Não tenho necessidade, para a minha alegria, da miséria de alguém e eu não quero uma riqueza entristecida, como um papel de parede, por todas as infelicidades representadas sobre sua pele.”

Quanto à Diaba, eu mentiria se não confessasse que à primeira vista eu encontrei nela um estranho charme. Para definir esse charme, eu não saberia compará-lo a nada mais que aquele das mulheres muito belas já avançadas em idade que, contudo, não envelhecem mais e de quem a beleza guarda a magia penetrante das ruínas. Ela tinha um ar ao mesmo tempo imperioso e desengonçado, e seus olhos, apesar de vencidos, continham uma força fascinadora. Aquilo que mais me golpeou foi o mistério de sua voz, por meio da qual eu reencontrava as lembranças das mais deliciosas contraltos e também um pouco da rouquidão das goelas incessantemente lavadas pela aguardente.

 “Você quer conhecer meu poder?” disse a falsa deusa com sua voz feiticeira e paradoxal. “Escute”.

E ela embocou então uma gigantesca trombeta, incrustada, como uma avena, de manchetes de todos os jornais do universo, e através dessa trombeta ela gritou meu nome, que rolou assim através do espaço com o ruído de cem mil trovões, e retornou-me repercutida pelo eco do planeta mais longínquo.

 “Diabo!” disse eu, meio subjugado, “eis o que é precioso!” Mas examinando mais atentamente a sedutora virago, pareceu-me vagamente que eu a reconheci por tê-la visto brindando com alguns malandros de meu conhecimento, e o som rouco do cobre levou às minhas orelhas não sei qual lembrança de uma trombeta prostituída.

Também eu respondi, com todo o meu desdém: “Saia daqui! Eu não fui feito pra desposar a amante de certos homens que não quero nomear.”

Com certeza, com uma tão corajosa abnegação eu tinha o direito de estar orgulhoso. Mas infelizmente eu despertei, e toda minha força me abandonou. “Em verdade, eu disse para mim mesmo, seria necessário que eu estivesse pesadamente entorpecido para mostrar tais escrúpulos. Ah! Se eles pudessem retornar enquanto eu estou acordado, eu não me faria de tão delicado!”

E eu os invoquei a alta voz, supliquei-lhes que me perdoassem, prometendo-lhes me desonrar tantas vezes quanto fosse necessário para merecer seus favores, mas eu tinha, sem dúvida, lhes ofendido fortemente, porque eles jamais voltaram.



TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP